Documento que muda marco legal do setor pode ser alvo de ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal
Uma medida provisória (MP 844/18) que muda as diretrizes do marco legal do saneamento básico no país foi assinada pelo presidente Michel Temer em 6 de julho de 2018.
A Lei de Saneamento Básico data de 2007 e estabelece pontos como a universalização do acesso ao serviço e sua adequação a critérios de saúde pública e proteção ambiental.
Uma das principais alterações promovidas pela nova MP foi tornar a ANA (Agência Nacional de Águas) uma agência reguladora dos serviços públicos de saneamento básico, atribuição que até agora era do Ministério das Cidades. À ANA cabia regular o acesso e uso dos recursos hídricos no âmbito da União, como rios que atravessam mais de um estado.
Os serviços da área incluem atividades como abastecimento de água, tratamento de esgoto, limpeza urbana, manejo de lixo sólido e drenagem das águas das chuvas. Hoje, essas tarefas são realizadas pelos estados e municípios por meio de empresas públicas, privadas ou mistas. Em março de 2018, o presidente Temer defendeu o papel de empresas privadas na expansão da rede de esgotos.
Outro artigo da MP busca aumentar a concorrência entre concessionárias estaduais públicas e empresas privadas. Torna obrigatória a abertura de licitação toda vez que uma prefeitura quiser realizar obras de água e esgoto. Até agora, só era necessária a concorrência quando uma gestão quisesse contratar uma empresa privada. Se a opção fosse realizar o trabalho diretamente com uma empresa pública estadual, o procedimento não era exigido.
Durante pronunciamento no Fórum Mundial da Água, realizado em Brasília entre 18 e 23 de março de 2018, o presidente Temer defendeu o papel de empresas privadas na expansão da rede de esgotos.
Dados de 2015 do Instituto Trata Brasil mostram que 83,3% dos brasileiros contam com água encanada, mas apenas 51,9% têm esgoto. Somente 42,67% dos esgotos coletados no País são tratados.
Questão constitucional
Pontos como esses vêm sendo questionados por uma ampla rede de entidades do setor de saneamento, incluindo associações, agências reguladoras e órgãos locais. A ideia é entrar com uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal). As informações são da Folha de S. Paulo.
Segundo a Constituição, é dos municípios a atribuição de cuidar dos serviços de água e esgoto.
“A questão territorial regulatória é complexa. Como a ANA pode estipular a tarifa no interior do Pará? O critério não pode ser o mesmo do Rio de Janeiro, por exemplo”, disse Fernando Alfredo Rabello Franco, presidente da Abar (Associação Brasileira de Agências de Regulação) à Folha.
O Nexo conversou com dois especialistas sobre as propostas contidas na MP.
Edson Aparecido da Silva é sociólogo e Mestre em Planejamento e Gestão do Território. Foi Coordenador do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama) e assessor de Saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU). Integra o Coletivo de Luta pela Água de São Paulo.
Paulo Roberto de Oliveira é vice-presidente da ABCON (Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto).
A MP do saneamento pode contribuir para a expansão da cobertura do saneamento básico nas cidades brasileiras ao facilitar a entrada de empresas privadas no setor? Que outras mudanças ela pode trazer?
EDSON APARECIDO DA SILVA A universalização do acesso aos serviços de saneamento só será possível com o fortalecimento do papel do Estado como indutor dessa política pública e com a instituição de fortes instrumentos de controle social. As regiões com maior carência de saneamento básico são aquelas que não são atrativas para o setor privado por não gerarem lucro. O que normalmente interessa a essas empresas são as áreas consolidadas, onde a necessidade de investimentos é menor porque grande parte dos investimentos já foram feitos com recursos públicos e através das tarifas.
O caminho para se atingir a universalização seria: 1) retomar fortemente os investimentos; 2) fortalecer os instrumentos de controle social, por exemplo retomando as atividades do Conselho Nacional das Cidades que foi desmontado pelo atual governo; e 3) priorizar a implementação do Plansab – Plano Nacional de Saneamento.
Por fim, é importante que todos saibam que há um processo no mundo de retomada da prestação dos serviços privados de saneamento pelo setor público. Cidades como Paris e Berlim, entre outras, retomaram os serviços.
PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA Sim, a MP reflete algo que é consenso entre as principais entidades que atuam no saneamento, mesmo as públicas, de que a participação da iniciativa privada é fundamental para que o Brasil possa expandir a cobertura dos serviços de água e esgoto. Existem metas estabelecidas pelo Plansab – Plano Nacional de Saneamento Básico, e essas metas estão muito longe de serem cumpridas. O investimento atualizado para o país atingir a universalização do saneamento em 2033, como projetado, é de R$ 22,25 bilhões por ano. Para atingir esse patamar, é necessário dobrar a média de investimento anual total no saneamento registrada nos últimos anos (R$ 11,70 bilhões em 2016, o que representa apenas 0,18% do PIB; pelo Plansab, seria necessário investir 0,33% do PIB). A crise fiscal e a falta de recursos públicos para grandes investimentos agravaram essa questão.
A iniciativa privada hoje atua direta ou indiretamente em apenas 6% dos municípios. Apesar de possuir recursos financeiros e experiência em concessões já maduras e com bons resultados em várias cidades do país, a participação da iniciativa privada no saneamento ficou estagnada nos últimos anos, não apenas em virtude da insegurança jurídica, mas também em razão da manutenção dos contratos de programa, pelos quais os municípios renovam automaticamente suas concessões com as companhias estaduais, muitas vezes sem metas claras a serem atingidas a partir da renovação do contrato.
A MP traz, entre outros desdobramentos, a ampliação da competitividade, ao permitir que a iniciativa privada possa apresentar propostas quando da renovação dos contratos de concessão firmados entre municípios e empresas estaduais. Hoje, essa renovação acontece automaticamente, sem a chance de que outros players possam sequer manifestar seu interesse, oferecendo condições melhores para a gestão dos serviços, com regras claras de investimentos comprometidos e metas de expansão.
É necessário salientar que, diante do gigantesco déficit – 100 milhões de brasileiros sem rede de esgoto –, apenas a cooperação entre os recursos públicos e os recursos privados poderá solucionar os graves efeitos da falta de saneamento na saúde, educação, bem-estar social e preservação do meio ambiente. Isoladamente, nenhum dos segmentos conseguirá suprir essa demanda de investimentos.
O que significa para a área de saneamento transformar a Agência Nacional de Águas (ANA) em uma agência reguladora?
EDSON APARECIDO DA SILVA É preciso tomar cuidado para não retomar um processo de centralização no governo federal que marcou o setor de saneamento durante o Planasa (Plano Nacional de Saneamento, em vigor entre os anos 1970 e 1980). O Brasil é um país com dimensões continentais, com realidades muito diversas. Na minha opinião, é mais saudável permitir que os Estados, as regiões e os municípios definam a melhor forma de regulação. Não creio que seja necessário à ANA definir “diretrizes de regulação”. A experiência regulatória no Brasil já permite que os entes da federação se ocupem dessa tarefa de forma eficiente e eficaz.
PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA Significa uma maior padronização dos modelos de regulação no saneamento, que hoje são inúmeros e bastante dispersos em diferentes regiões do país.
A MP afeta o domínio que as empresas mistas (como Sabesp) têm sobre o setor e as cidades maiores?
EDSON APARECIDO DA SILVA A determinação de que os municípios, antes de firmarem contrato de programa com as companhias estaduais de saneamento, façam consulta pública para saber se a prestação dos serviços no município interessa a alguma empresa, afetará, sim, as companhias estaduais, na medida em que o contrato só poderá ser assinado sem licitação caso não haja interesse por parte de outro prestador. Na prática, o que pode acontecer é que o interesse das empresas privadas se volte aos municípios mais rentáveis e os menos rentáveis se mantenham nas mãos do setor público. Isso desestruturará sobremaneira o setor de saneamento, já que um dos seus pilares, que é o subsídio cruzado, onde os municípios superavitários subsidiam os deficitários, se tornará inviável. Lembramos ainda que os mecanismos para participação do [setor] privado no saneamento já existem e são fartos, como o artigo 175, da Constituição Federal, e a Lei de Concessões e das PPPs.
PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA A MP traz uma sistemática nova para o setor, ao permitir que o município possa convocar e receber propostas com melhores condições para a solução do saneamento em sua localidade.
Fonte: Nexo